terça-feira, 21 de agosto de 2012

O Ladrão de Mães.


Todos os dias Joana de despedia da patroa às dezessete em ponto, segurando sua sacola listrada em azul, vermelho e amarelo e caminhava dois quarteirões, debaixo de sol ou de chuva, rumo ao ponto de ônibus. Aquela não foi a vida que sonhou ter, mas era aquele trabalho que tornava sua realidade um pouco mais suportável. Filha da lavradores, soube desde cedo que, se não estudasse, iria terminar como a mãe, cuidando da casa e dos filhos. A falta de dinheiro porém a afastou dos estudos e, para não seguir o caminho da mãe, Joana se mudou para a cidade e acabou cuidando da casa e dos filhos dos outros. Acordava todos os dias às cinco horas, solitária naquele cômodo frio que conseguira alugar com alguma sorte no centro da cidade. O que Joana tinha era pouco, mas bastava. Depois de se levantar, preparava um café preto, procurava por algum biscoito esquecido no fundo de alguma lata e seguia para a casa de dona Laura, uma jovem senhora que, por trabalhar fora, contratou-a para ajudar com a limpeza da casa e para olhar seus filhos, muito bem educados e já em idade de alfabetização. Joana os tratava com se fossem seus próprios filhos, ora fazendo as vontades, ora corrigindo com palavras severas algum comportamento inapropriado. E foi numa terça-feira ensolarada que a história de Joana mudou. Assim, de repente, como um sopro de vento que balança as folhas antes de uma tempestade, Joana, que seguia a caminho do ponto de ônibus com sua sacola listrada, resolveu continuar andando rumo a sua casa, aproveitando os últimos raios de sol e o calor suave daquela tarde de verão. Caminhava olhando para o chão e espiando o céu, pensando em como chegara ali, como perdera seus pais cedo, como seus irmãos haviam se separado em diferentes caminhos, como encontrara dona Laura em um mercado comum e conseguira aquele emprego que, há tantos anos, dava algum sentido a sua vida. De repente, um som de carro. A porta batendo forte. O rapaz se aproximando dela sem que conseguisse ver seu rosto. O capuz de lã quente sendo enfiado em sua cabeça de modo grosseiro e seu corpo sendo encolhido e depois apertado contra o banco de couro. O som do carro partindo. A partir dai, Joana se perdeu entre o medo e uma espécie de sono, repetindo orações desconexas e palavras que voavam soltas no vento que entrava e saia pela janela aberta. Suas mãos estavam presas e alguém estava sentado ao seu lado, com uma respiração quente e silenciosa, sem emitir qualquer palavra. O carro seguia em velocidade constante, virando aqui e ali, enquanto Joana transpirava dentro do capuz de lã. Ela nunca saberia dizer por quanto tempo ficou dentro daquele carro ou por quantas ruas passou durante aquele período de medo sem fim, quando de repente acordou em um quarto de paredes lilás. A cama em que estava deitava era macia, e, embora ainda vestisse as mesmas roupas que usava ao sair da casa de dona Laura, sentia-se descansada, com o rosto limpo e as mãos livres. Sobre seus pés estava uma linda colcha de patchwork. Joana olhou ao redor, desconfiada, sem entender onde estava ou se aquilo era na verdade, um sonho. Chegou até mesmo a pensar que estivesse morta, mas tudo era real demais. O cheio de alfazema saindo do travesseiro, os lençóis macios, a penteadeira branca com seu lindo espelho recortado em formato de coração e um vidrinho de perfume sobre ela. Pegou-o nas mãos, segurando firme e quase se perdeu entre seus pensamentos enquanto a essência de Jasmim penetrava em sua pele. Lembrava-se daquele perfume porque, na casa onde passara sua infância, costumava sentar-se debaixo de uma pequena árvore de folhas e flores miúdas, fechando os olhos e sentindo aquele aroma levemente adocicado. Aquele quarto era perfeito em todos o sentidos, a delicadeza, a doçura, o vaso com flores recém colhidas sobre o parapeito da janela, as cortinas de renda, o tapete bordado com muito cuidado e atenção. Joana pensou em seu cômodo no centro da cidade, em como tentara fazer daquele pequeno espaço um verdadeiro lar e em como, depois de alguns meses, desistira, rendendo-se ao ambiente pesado e úmido e deixando de lado toda sua criatividade e disposição para trabalhos manuais, como aquele tapete que ela não se cansava de admirar. Depois de alguns minutos observando cada detalhe daquele lugar desconhecido e, ao mesmo tempo, tão aconchegante, ouviu a maçaneta da porta girar. A porta se abriu lentamente, deixando apenas uma fresta convidativa, esperando que a curiosidade vencesse o medo e que a própria Joana viesse ao encontro do desconhecido. E foi o que ela fez, pisando suavemente para não fazer barulho no assoalho impecavelmente encerado, empurrou a porta, encontrando um lindo salão com uma grande mesa a sua frente. Neste instante uma criança de aproximadamente cinco anos de aproximou de Joana, abraçando com muita força suas pernas e puxando suas mãos. Joana se sentiu tocada com o carinho daquela criança que, numa ato de pura ingenuidade a chamou de mãe. A vida não lhe dera a oportunidade de gerar, em seu próprio ventre, um bebê cor-de-rosa e sorridente, como muitas vezes sonhara em ter. Mas lhe dera todo amor necessário para ser mãe, de coração. Aquela palavra, dita por aquela criança maravilhosamente perfeita, despertou em Joana um sentimento já conhecido, mas infinitamente mais intenso do que aquele que sentia ao ajudar os filhos de dona Laura a terminar a lição de casa. Mas a menina ou não viu, ou ignorou as lágrimas emocionadas no rosto de Joana e encaminhou-a até um lindo jardim onde outras crianças brincavam. Todas elas, ao verem Joana, vieram ao seu encontro, com sorrisos largos e fáceis, abraçando cada pedacinho dela que pudessem alcançar. Porque aquelas crianças a chamavam de mãe? Porque elas tocavam seu coração de maneira tão profunda e gentil e por que, ao ver seus rostinhos, Joana agradeceu do fundo de seu coração por ter entrado naquele carro e ter podido viver este momento? Joana nunca soube do porque fora escolhida, mas continuou naquela casa durante toda sua vida, cuidando daquelas e de outras crianças que apareceram, abandonadas, tristes, feridas. Outras mães também apareciam por lá, outras mães de coração, que carregavam consigo o dom supremo do amor. Mães que não tinham família. E elas se tornaram todas mães de verdade, no dia em que aquele carro parou na rua e aquele capuz preto lhes fora colocado na cabeça. Afinal, não é assim que uma mulher se torna mãe?  

Chuvisco.


Os pés descansando, o cabelo voando a garoa molhando tudo ao redor. Eu olhava para baixo enquanto o sorvete de duas cores se contorcia na casquinha firme em minhas mãos. Num gesto sutil levei a primeira colherada daquela massa gelada à  boca. O sabor não era doce o bastante, nem amargo o suficiente. Mas, assim como a vida, eu o saboreei, até o fim.

SOS


Porque eu não consigo notar em você a tristeza que vejo nítida nos olhos de outro? Porque seus desabafos não apertam meu coração e  a compreensão não mais faz parte de nós? Aliás, você me disse que havia algo entre esse nós. Será que você não vê este abismo? Este espaço cheio de ar sujo que permeia entre ambos, com suas tristezas, dúvidas e xingamentos silenciosos? Onde foi para a alegria do seu sorriso? Me leva pra lá também, pra encontrá-la e ser feliz de novo. Você diz que não consegue levantar, então me deixa sair daqui, caminhar. Eu volto pra me deitar com você quando o dia acabar, mas não me prenda na sua tristeza que começa a mexer no meu peito, como uma doença definhando meus pulmões. Não tire de mim a alegria das palavras, não roube meu amor para cobri-lo de desilusão. Eu não posso cuidar de alguém que deveria cuidar de mim. Viu? Cadê você agora que eu preciso? Você me derrubou e me pediu pra te ajudar a levantar. Mas agora eu cai também, olha. Ficamos juntos na lama, na solidão, na escuridão da falta de esperança. Minhas palavras estão se afogando em silêncio e nosso beijo ficou seco, congelado no tempo. Levanta dai, menino. Vem fazer a mulher da sua vida feliz. Vem trazer vida pra uma mulher que é feliz por você. De que bastam as promessas e os sonhos se você fechou seus olhos e respira ofegante esse pó da acomodação? Vai, levanta dai. Levanta e encontra forças pra me levantar também. Porque sem você eu ando sem rumo, eu caio sozinha, eu respiro ar sujo, eu apago sonhos, eu congelo beijos.


quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Procurando.


Olá, desculpe incomodar mas eu estou procurando uma menina baixinha, meio gordinha, das olheiras fundas e do cabelo quase preto. Isso mesmo, uma que tem a sobrancelha grossa. Ah, você não viu. É uma menina que anda girando na ponta dos pés pra fazer seu vestido rodar e não tem medo de altura. Sabe qual é? Sim, ela tem um cachorro grande que adora ganhar cafuné bem no meio da testa e que, quando pede alguma coisa, mostra os dentes como se estivesse sorrindo. Isso mesmo: um irmão mais novo e um bambolê desmontável que ela deixa jogado no quintal. Não me diga que você também sabe sobre os contos que ela escreve no computador da mãe? Exatamente! As histórias do Cebolinha e da Mônica. Ela é mesmo uma figura, né?! Sempre inventando brincadeiras novas e sempre perdendo alguma coisa no intervalo da escola. De repente me bateu uma saudade dela. Toda aquela timidez e inocência. É mesmo? Então faz tempo que ela não passa por aqui. Vai ver ela cresceu. Ou esqueceu o caminho de volta.