sexta-feira, 31 de julho de 2009

O vestido de Júlia

Julia é uma fascinada por vestidos de noiva. Do tipo maníaca, perseguidora e solteira.
Há tempos ninguém na sua família se casa. E ela mesma já perdeu as esperanças.
Depois do almoço, quando passa pela lanchonete da Sr. Eliza, Julia para em frente a vitrine da pequena loja de noivas da Rua Pequetita que exibe, orgulhosa, aquele vestido desgastado que um dia fora branco. Mas não é o modelo, nem a cor, e muito menos o preço que fascinam Julia. É o sonho.
O vestido da noiva é o sonho realizado em tecido, bordados e linha, muita linha.
Julia se perguntava quantas noivas já não haviam realizado o maior sonho de todos e tiveram o momento mais feliz de suas vidas usando aquele vestido.
Ela fora noiva certa vez no passado. Havia providenciado todos os detalhes, havia encontrado o vestido perfeito, com o véu que mais parecia o céu de uma tarde de verão sobre seus cabelos, beijando suavemente a calda que lhe seguia os sapatos dourados.
Certa tarde enquanto tricotava um cachecol, Julia se deu conta do quanto fora feliz em seu vestido que jamais adentrou a igreja. Aquela era a forma mais concreta de seu sonho: o vestido. O mesmo vestido que agora realizava o sonho de muitas outras jovens que passavam pela lojinha da Rua Pequetita.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Fila

Sai de casa pra fila do ônibus.
Fiquei na fila do corredor.
Cheguei no trabalho, pra fila da catraca.
Dei bom dia para a fila do elevador.
Deixei minhas coisas na mesa pra pegar a fila do café da manhã.
A fila do leite estava menor que a da manteiga.
Trabalhei com a imagem de um Fila na tela.
Fui almoçar num restaurante com fila de espera.
Peguei fila no caixa, ao lado da fila do manobrista.
Fila da catraca e do elevador.
Dia sem novidades, e fila pra escovar os dentes.
Encontrei uma fila de formigas na minha mesa.
Fila pra pegar o trem de volta pra casa.
Fila pro passe. Fila do corredor. Fila pra descer.
Já deitada, conto carneirinhos. Pulando. Em fila.

Duelo

Estávamos frente a frente.
Como num duelo.
As lágrimas pesadas com chumbo rasgavam meu rosto.
Nossas mãos já não se encontravam mais.
Aqueles olhos opacos, mortos, gritavam adeus.
Minha respiração ofegante arrancava de meu peito qualquer sopro de esperança.
Queria gritar. Correr. Morrer. Não antes de tocar seus lábios pela última vez.
O mundo não girou por três eternos segundos. Nada aconteceu. Nada.
Apenas o vento assobiando a trilha de nosso fim.
Podia ouvir o som do meu desespero.
Meus sonhos se quebrando como um copo de cristal.
Foi naquele momento.
Você se virou. Eu morri. Como num duelo. Sem olhar pra trás.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Gabriela e suas coisas

Gabriela gostava de coisas. Coisas de todos os tipos.

Tinha seis portas de guarda-roupa com todas as coisas mais legais do mundo.

Em uma manhã de sol ela se perdeu entre os cintos, sapatos e cachecóis e acabou achando aquela coisa toda muito estranha.

Ela já não sabia quem ela era ou do que gostava. Tinha tantas coisas que acabou se esquecendo do principal. Por fim, ela percebeu que as únicas coisas que realmente importavam eram aquelas que ela podia carregar dentro de seu coração.

Gabriela vestiu o cinto, combinou com o sapato, completou com o cachecol e saiu a procura de um grande amor.

De alma comprada

Desde criança eu queria fazer propaganda.

Eu gostava dos publicitários com suas roupas descoladas, tatuagens e cabelos diferentes. Pensava até em um comercial para pasta de dente com um solzinho sorridente iluminando o dia com seus dentes brancos.

Hoje trabalho em uma grande agência onde muitos dizem ter medo de se tatuar e as meninas usam salta alto. Mas eu sinto a criatividade que envolve a alma de todos. É uma coisa colorida que se propaga pelo ar, cheia de idéias e significados. É a criatividade que deixa tudo legal por aqui.

Eu ainda não sei se propaganda é a alma do negócio, mas de certo propaganda é um negócio que vem da alma.

Perdas

Desde criança Laura sofre de um estado de culpa crônico. É uma espécie de sensação de culpa que atinge as pessoas naturalmente desastradas e esquecidas quando são surpreendidas por uma perda.

Com Laura, o quadro começou ainda criança quando ela chegava em casa e se dava conta de que havia esquecido os potinhos da lancheira em algum lugar do pátio na hora do recreio. Sua mãe também não colaborava: comprava os melhores potinhos que uma criança poderia ter e isso com certeza, não ajudava no processo de aceitação da perda.

Quando Laura se dava conta de que havia perdido algo, uma culpa terrível amolecia suas pernas, disparava seu coração e lhe causava uma ânsia incontrolável. E, hoje, já adulta, Laura ainda não aprendeu a lidar com esse sentimento, muito menos deixou de perder as coisas.

Não importa se perdeu a hora, se perdeu a vez, se perdeu a chance de ficar calada ou a oportunidade de comer menos na hora do almoço, Laura só tem uma certeza: hora ou outra a culpa vai lhe consumir.

Certo dia, enquanto se torturava entre a culpa de ter comido uma sobremesa e de ter deletado uma música que não lhe agradava muito, Laura recebeu um telefonema.

Foi nesse telefonema que Laura percebeu que a culpa é o pior arrependimento que existe, porque ela havia acabado de perder alguém que amava.

A culpa não era de Laura que seu avô tivesse ficado doente, tampouco que tivesse falecido. Mas era culpa dela não ter dito que o amava quando teve chance, nem mesmo de ter agradecido por tudo que ele havia feito por ela.

A culpa que Laura sentiu era maior do que ter perdido o potinho no recreio, o caderno na faculdade, ou a hora para aquela festa que ela esperou meses para acontecer. E foi então que ela entendeu que não tinha perdido todas essas coisas: ela tinha ganhado.

Laura ganhou um potinho lindo que pode usar por longos meses, um caderno que lhe ajudou a passar na prova de Geografia e um namorado que conheceu na porta da festa que acabou não entrando por causa do atraso. E, enquanto se despedia, Laura agradeceu por ter ganhado o melhor avô do mundo e relembrou com carinho e lágrimas de saudade todos os momentos que passaram juntos.

Proibido

Por incrível que pareça, a primeira vez que ouvi aquela palavra foi da boca da professora de ciências.

É engraçado como a palavra “maconha” não saiu dos lábios dos meus pais durante toda minha adolescência. Acho que tem a ver com a postura que eles decidiram tomar na minha criação: a gente finge que não existe, ela finge que não usa.

Isso não significa que eu use, mas também não quer dizer que, em algum momento desta minha breve história de vida, não tenha tido a curiosidade de experimentar.

Acontece que na escola a coisa é diferente do jantar de casa. Não existem palavras proibidas, significados desconhecidos, nem acessos limitados a substâncias ilegais.

Em resumo: se seu filho quiser, ele provavelmente vai conseguir.

Foi assim com nossos avós, com nossos pais e, com certeza, na nossa geração o trem descarrilou de vez. Agora não é uma questão de paz e amor, é uma questão de tráfico e guerra.
As drogas deixaram de ser um tabu pra se tornar uma pedra no sapato da sociedade e no caminho da luta contra a violência.

Para mim a maconha se tornou uma palavra conhecida, mas ainda me faltam motivos para acreditar que a sua descriminalização irá nos trazer de volta um pouco de paz e, quem sabe, de amor ao próximo.