sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Esqueça

Rita não sabia o que era, não sabia onde estava.
E muito reclamava.
O Doutor paciente, ouvia as queixas desconexas.
O diálogo se estendeu em lacunas e hiatos.
Rita abriu a boca e o Doutor arregalou os olhos.
Ela se esquecia do mundo, ele tocava nas bandas.
Em meio aos nomes de famosos pode ver seu filme predileto.
Por fim, diagnosticou.
Estava tudo lá.
Rita tinha a memória na ponta da língua.

O amor

O amor me dá medo.
Medo de perder, de errar, de sofrer.

As vezes tenho medo de amar demais, ser amado de menos.
Medo de errar na medida do ciúme.

O amor brinca com meus batimentos.
Subestima meu coração.

Ele vem e vai. Faz rir e chorar.
Decididamente o amor me faz ficar.

E o medo fica pequenininho, perdido na imensidão do amor.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Desaniversário

É importante que você saiba de duas coisas: a primeira é que meu guarda-roupa tem uma gaveta.

A segunda é que eu não ligo para aniversários. Aliás, não fosse pelo inferno astral, algumas marquinhas de expressão mais evidentes e minha priminha - que até ontem era um bebê - dizer que está namorando, talvez eu nem me desse conta que fico mais velha a cada ano.

Eu gosto mesmo é da festa dos outros. E amo quando esse outro é uma criança e a festinha é no Buffet. Mas ano passado tive a brilhante idéia de reunir a família para comemorar meus vinte e um aninhos. Essas reuniões costumam render algumas calcinhas para o dia-a-dia, um creminho pra mão e uma ou outra tranqueirinha divertida.

A organização exige cuidado e atenção: bolinho de padaria, amendoins em tigelinhas e refrigerante para as crianças. A recepção e o papo furado com suas tias avós fica a cargo da mamãe. Os assuntos vão de doença a geladeira da vizinha.

E no meio de tanta diversão você abre aquele embrulho contendo uma camiseta verde, com uma abóbora e aquela frase em inglês do Paraguai na cor neon fluorescente.

Sua avó elogia, a prima solteirona garante que ficou certinho e sua mãe manda você agradecer como se tivesse seis anos de idade.

Não adianta trocar, doar para a os desabrigados do Tsunami ou dizer que foi assaltada e entregou o presente em troca de sua vida.

Quem deu um presente ruim nunca esquece. Nunca. Ele pergunta sobre o presente. Ele quer ver você usando. Ele realmente acha que o presente é bom.

E é por essa e por outros que eu tenho essa gaveta, para me lembrar que no ano que vem tem mais. Ainda bem!

O bilhete

Ele olhou para as mãos que tremiam como aquela mesa com os pés tortos da casa da tia Lili. Podia sentir uma gotinha de suor escorrendo por sua testa em direção ao olho esquerdo. Aquilo causava uma ardência incômoda.
Tinha certeza que aquela era a sala certa. Havia comparado mais de dez vezes a plaquinha acima da porta com o bilhete que sua mãe lhe entregou. Lembrou-se de cada palavra sobre não perder o tal papel importante nem enfiá-lo em meio a bagunça de sua mochila.
Já conseguia se imaginar do outro lado da porta, tropeçando em frente a todos aqueles olhares desconhecidos que lhe analisavam meticulosamente. Procuravam de defeitos e falhas que poderiam - e iriam - ser usados contra ele em brincadeirinhas de mal gosto na hora do recreio.
Era sempre a mesma coisa: a tremedeira que lhe percorria o corpo magro, a ânsia que lhe corroia o estômago, o coração disparado e a vontade de sair correndo para enfiar a cabeça em um buraco bem fundo, como um avestruz.
Depois, vinha a raiva. Se seus pais não tivessem se separado nada disso estaria acontecendo. Ele ainda estudaria naquela escolinha de bairro em São José e não teria que ser analisado nem julgado por ninguém. Todos saberiam que ele era apenas ele: o garoto da casa amarela ao lado da sorveteria. Agora, veja só, não sabia nem o próprio endereço. Desistiu de tentar decorá-lo depois da quinta mudança.
Há mais de um ano era assim. Sua mãe mudava de emprego e ele mudava de escola. Tendo que enfrentar mais uma vez aquela gotinha de suor no olho esquerdo. Como aquilo incomodava!
Mas agora não era hora de pensar sobre o fracasso que havia sido o casamento de seus pais. Tinha que reunir toda a coragem que lhe restava e abrir logo aquela fechadura, antes que sua própria vida se tornasse um verdadeiro fracasso.
Pois é. Tinha. Mas acabou sentado na escada lá fora até que sua mãe aparecer para buscá-lo. Passando desapercebido por todas aquelas crianças que saiam das salas amplas e arejadas com seus cadernos agarrados ao peito.
Quando a mãe lhe abriu a porta do carro animada, perguntando sobre o primeiro dia de aula ele chorou. Como se fosse um bebê, ele chorou. Reuniu toda aquela coragem e conseguiu simplesmente chorar. Não disse nada além de alguns soluços.
No dia seguinte a mãe lhe deixou na porta da escola. O garoto parou em frente aquela porta e olhou para as mãos. O bilhete parecida diferente desta vez.
Ele lembrou-se das palavras de sua mãe que, assim como no dia anterior, lhe diziam para não enfiar aquele papel na mochila e, mais uma vez, frisaram o quanto se tratava de algo muito importante. As palavras haviam soado ainda mais firmes desta vez.
Ele abriu as dobras delicadamente feitas por sua mãe e leu as palavras escritas com a caneta dourada comprada especialmente para os cartões de natal da família. Guardou o bilhete no bolso, abriu a porta e entrou na sala.
Neste dia o garoto soube que a única porta que ele nunca deveria ter medo de abrir é a do coração. As outra, bem, essas são apenas portas.

Mal agradecida

Minha bolsa está sobre a mesa. A tempos eu não olhava para ela desse jeito, tão displicente, jogada ao esmo, sem eira e muito menos beira que de costume.

Ela é do tipo grande, pronta para levar todo tipo de tranqueira extremamente necessária para minha sobrevivência. Ou não. Nem sei ao certo o que há dentro dela.

Estou começando a temer aquela bolsa. Mais parece um buraco negro me encarando com todas aquelas coisas que um dia me pertenceram. Ela ri pra mim com aquele zíper dos dentes quebrados.

Ainda me lembro dela, tão novinha e inocente. Intocável.

Hoje esbarra em todo e qualquer tipo de objeto ou pessoa. Não respeita nem a si mesma.

É mesmo uma descarada de estar sobre aquela mesa. Jogando em minha cara todas as falhas e defeitos que me acometem. Todo o meu consumismo incontrolável, minha falta de atenção.

Quem ela pensa que é, ali jogada na mesa? A dona da minha vida? Me controlando, dizendo o que preciso ou não para viver?

O que ela está fazendo na mesa? Que mesa é aquela?

E quem é aquela mulher vindo em sua direção, jogando-a no ombro como eu mesma costumo fazer? Onde ela está indo? Onde minha bolsa pensa que vai? Aquele chaveiro dourado... Olha só como ela anda mostrando para tudo e todos que não se importa mais comigo. Moça! Moça, volta aqui! Socorro!

Chaveiro dourado?